Por Júlio Feriato
Até a primeira metade dos anos 1990, o doom/gothic metal seguia preso a uma estética essencialmente masculina, sombria e homogênea. Bandas como PARADISE LOST, ANATHEMA e MY DYING BRIDE reinavam nesse cenário lúgubre e introspectivo. Mas no dia 22 de agosto de 1995, um grupo holandês até então restrito ao underground extremo soltava ao mundo um disco que ninguém esperava — mas que todos precisavam ouvir. O nome banda era THE GATHERING. O álbum: Mandylion. E a partir dali, nada seria como antes.
É necessário o nobre leitor entender que, naquela época, mesmo que as bandas acima citadas tenham ousado incluir vocais femininos em algumas de suas músicas, a cena metálica ainda era embriagada pelo peso do death e do doom e jamais tinha testemunhado algo tão ousado quanto o que o THE GATHERING apresentou.
E, dentro deste contexto, a banda fez o impensável: uniu peso e densidade a uma voz feminina cristalina, emocional, quase etérea. O resultado? Um álbum que não apenas redefiniu a trajetória da banda, mas também reconfigurou o mapa inteiro do gothic/doom metal mundial. Mandylion abriu portas, quebrou barreiras e mostrou que brutalidade e sensibilidade podiam coexistir em harmonia — algo impensável até então.
Porém, antes de lançar Mandylion, o THE GATHERING caminhava à beira do abismo. O debut Always… (1992) agradou aos mais radicais do doom/death, mas ficou restrito ao underground. Almost a Dance (1993) foi um tropeço, um disco desarticulado que quase encerrou a trajetória da banda. Só que, no meio do caos, surge a figura de Anneke van Giersbergen, uma jovem holandesa de apenas 22 anos, dona de uma voz que parecia não pertencer a este mundo. Com ela, o THE GATHERING entrava no Woodhouse Studios, na Alemanha, em junho de 1995 — e em apenas duas semanas gravava um dos álbuns mais transformadores da década.
Logo na faixa de abertura, “Strange Machines” deixou claro que o THE GATHERING não seria mais apenas “mais uma banda de doom”. O single virou hino, símbolo da nova era. A música fala sobre viajar no tempo — e soou, ironicamente, como uma viagem no tempo da própria cena, abrindo portais para um futuro que ninguém esperava.
Na sequência, “Eléanor”, talvez uma das mais belas canções da banda, trouxe melancolia e lirismo em doses perfeitas. A interpretação de Anneke Van Giersbergen transformou a faixa em um hino pessoal de muitos fãs, especialmente daqueles que vinham de vertentes mais extremas e se viram cativados por essa mistura de peso e emoção.
“In Motion #1” e “In Motion #2” mostravam a veia atmosférica e hipnótica que a banda exploraria ainda mais no futuro. Um díptico quase cinematográfico, alternando passagens etéreas com explosões de peso — como se cada música fosse uma porta para um universo novo.
O centro do álbum é marcado por “Leaves”, a faixa mais conhecida do disco e talvez a mais icônica da carreira da banda. Aqui, o THE GATHERING atingiu um equilíbrio raro: acessível sem perder densidade, radiofônico sem ser superficial. O videoclipe ajudou a atravessar fronteiras e conquistar até ouvintes de fora do metal, transformando a música em um verdadeiro cartão de visitas mundial.
Já “Fear the Sea” resgatava a densidade quase claustrofóbica do doom, mas iluminada pela voz de Anneke, que conferia humanidade e fragilidade à brutalidade instrumental.
“Mandylion”, a faixa-título, mergulhava em referências esotéricas e religiosas, ampliando a aura espiritual que permeia o disco.
E por fim, “Sand and Mercury” encerrava o álbum como um épico transcendental, misturando introspecção, peso e atmosfera em um desfecho que não apenas fechava um capítulo, mas coroava um marco definitivo do metal dos anos noventa.
O impacto foi imediato. Mandylion vendeu bem na Europa, chamou atenção da crítica e, principalmente, abriu caminho para toda uma geração de bandas com vocal feminino no metal: WITHIN TEMPTATION, EPICA, AFTER FOREVER, LACUNA COIL, NIGHTWISH. Todas, direta ou indiretamente, foram influenciadas pela ousadia do THE GATHERING. Depois dele, ficou provado que era possível soar pesado e ainda assim belo, agressivo e ainda assim emocional. Em outras palavras: Mandylion quebrou as correntes.
Três décadas se passaram, mas Mandylion continua sendo referência. É lembrado não só como o melhor disco do THE GATHERING, mas como um alicerce da identidade do gothic metal europeu. Ainda hoje, bandas e fãs recorrem a ele como um ponto de partida, como um manual de como se equilibrar entre peso e sensibilidade.
Celebrar os 30 anos de Mandylion é mais que relembrar um disco. É reconhecer o momento em que uma banda prestes a se dissolver decidiu apostar tudo em uma mudança radical — e, com isso, escreveu história. Poucos álbuns tiveram esse poder transformador. Mandylion não apenas marcou época: ele abriu novos caminhos para o metal e continua a ecoar como uma das obras-primas absolutas dos anos 90.
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