O metal não rejeita necessariamente o Cristo como figura espiritual, mas sim o uso político e autoritário de seu nome.
O Heavy Metal, desde seu surgimento no início dos anos setenta, sempre foi associado ao obscuro, ao proibido, ao “antirreligioso”. Letras que mencionam demônios, símbolos ocultistas, cruzes invertidas e referências ao apocalipse fizeram com que o gênero fosse tachado de “satânico” por religiosos conservadores.
Já o Espiritismo surgiu no século XIX como uma filosofia que rejeita o Deus punitivo do cristianismo tradicional e propõe um Deus inclusivo, sem preconceitos ou julgamentos.
Com base nisso, será que o heavy metal não está mais alinhado com a doutrina apresentada por Allan Kardec do que propriamente com o satanismo?
A rebeldia do metal é, em grande parte, uma reação à imagem tradicional de um Deus vingativo, severo e controlador — aquele que condena o pecador à danação eterna, que exige obediência cega e que é usado como justificativa para moralismos e autoritarismos religiosos. Esse Deus — criado mais por teólogos do que por Cristo — é o principal alvo da revolta artística do metal.
Nesse cenário, a figura de Satã é comumente usada não como objeto de adoração literal, mas como símbolo de oposição, de liberdade frente à opressão religiosa, de rebeldia contra dogmas sufocantes. Essa representação, embora chocante à primeira vista, é muito mais filosófica do que espiritual no sentido negativo.
Noruegueses do Mayhem. |
Há casos — como na cena norueguesa dos anos 1990 — em que houve, sim, uma adesão simbólica ao satanismo. No entanto, mesmo nesses contextos, o que se propunha era mais uma filosofia niilista ou anticristã do que um culto literal ao diabo.
Grande parte do uso de símbolos "satânicos" ou "anticristãos" no metal não tem compromisso religioso real. Trata-se, muitas vezes, de uma reação estética e filosófica à hipocrisia moral e social promovida por certas instituições religiosas — especialmente aquelas ligadas ao cristianismo histórico.
Essa crítica encontra eco na doutrina espírita, que também se distancia do cristianismo tradicional ao rejeitar um Deus vingativo, o inferno eterno e a ideia de salvação por fé cega. O Espiritismo apresenta um Deus de amor, progresso e justiça, que concede ao ser humano liberdade de consciência e evolução moral. A doutrina codificada por Allan Kardec é, por si só, revolucionária em relação ao cristianismo romano. Ela rejeita o céu e o inferno como lugares físicos; não crê no diabo como entidade; vê a alma como em constante evolução; e valoriza a razão tanto quanto a fé.
Do ponto de vista espírita, o que se entende por “satanás” ou “espíritos do mal” são espíritos ainda ignorantes, ligados à matéria, que podem, sim, influenciar negativamente — mas não são figuras absolutas do mal.
Esses pontos coincidem, curiosamente, com os temas abordados por bandas que criticam o “deus tirano”, a hipocrisia religiosa e a negação da ciência. Em vez de “do mal”, o que o metal muitas vezes clama é por justiça, autonomia e verdade.
Portanto, a “rejeição ao cristianismo” no metal, na maioria das vezes, não se opõe à espiritualidade em si, mas a um sistema religioso que oprime, impõe medo e sufoca a individualidade — exatamente o que o Espiritismo também combate.
A culpa é do cristianismo romano? De certo modo, sim. A aversão ao cristianismo no metal é uma reação ao cristianismo institucionalizado: aquele que queimou bruxas, promoveu cruzadas, oprimiu mulheres e matou em nome de Deus. O metal apenas faz barulho sobre algo que a espiritualidade lúcida já denuncia há séculos: que religião sem amor e sem liberdade é prisão da alma.
Com base nisso, podemos concluir que os espíritas são pessoas de mente aberta e sem preconceitos, certo? Errado. Espíritas, independentemente do que diz a doutrina, são, antes de tudo, seres humanos passíveis de erros.
Casos recentes, como os shows de Madonna e Lady Gaga, trouxeram à tona uma face preocupante do movimento espiritualista atual. Muitos se apressaram em afirmar que esses eventos “abriram portais negativos” e que as artistas estavam “a serviço das trevas” (link de um dos videos aqui). Nada muito diferente do que igrejas pentecostais bradam sobre o axé e o funk. Mudou o discurso, mas o julgamento continuou o mesmo — agora com linguagem preconceituosa travestida de espiritual.
Em um episódio recente, um canal espiritualista no YouTube (video acima) afirmou que Ozzy Osbourne seria exilado da Terra após a morte, devido ao seu “estilo de vida degenerado” e sua “conexão com forças densas”. Ignora-se, nesse caso, que Ozzy se declara cristão há décadas, tem letras que abordam fé, culpa, dor espiritual e até apocalipse — sempre de forma simbólica, nunca incentivando o mal como valor.
Mais grave: ignora-se o princípio básico da doutrina espírita de que todos evoluímos com base em nossas ações e intenções — não em estética, musicalidade ou escolhas artísticas.
Essa postura moralista não é espírita. É apenas fanatismo com incenso — o mesmo que condena o corpo, a arte e a liberdade de expressão por medo de uma espiritualidade que não sabe dialogar com a complexidade humana. A espiritualidade que julga, condena artistas e vê o mal em toda forma de expressão artística não está mais conectada ao Alto — mas ao próprio orgulho espiritual, que Kardec tanto alertou.
Talvez esteja na hora de perceber que, entre espíritos e guitarras, a verdadeira vibração elevada está menos na aparência e mais na intenção.
De qualquer modo, em termos práticos, o Heavy Metal e o Espiritismo não estão em campos opostos. Ambos se rebelam contra visões dogmáticas, maniqueístas e limitantes. Os dois clamam, cada um à sua maneira, por autoconhecimento, consciência e liberdade de pensamento.
Talvez, num futuro próximo, vejamos mais metaleiros espíritas — e mais espíritas de mente aberta para entender que espiritualidade e contestação podem, sim, caminhar juntas.
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