28 julho 2025

O legado subestimado de "Mystery of Illusion", debut do CHASTAIN

Por Júlio Feriato


O disco que revelou uma das primeiras vozes femininas do metal tradicional americano ainda vive no coração dos headbangers old school.

Lançado em 1985, "Mystery of Illusion", álbum de estreia da banda CHASTAIN, é um daqueles discos que permanecem como relíquias escondidas do heavy metal tradicional. Liderado pelo virtuoso guitarrista David T. Chastain e com vocais poderosos da então jovem Leather Leone, o álbum é um marco não reconhecido do metal oitentista — uma obra que carrega um valor histórico inegável, mas que infelizmente jamais atingiu o merecido reconhecimento mundial.

O disco surgiu em um momento em que o heavy metal norte-americano vivia sua primeira grande onda de popularidade, impulsionado por bandas como Queensrÿche, Savatage e Manowar. Nesse cenário, o Chastain apresentava uma sonoridade que transitava entre o metal épico, o shred metal e o hard'n'heavy, com riffs afiados, solos técnicos e uma aura mística que dialogava com o power metal nascente. "Mystery of Illusion" é, portanto, parte da fundação do metal técnico e melódico nos Estados Unidos, ajudando a moldar um estilo que depois seria amplamente explorado por bandas como Vicious Rumors e Helstar.


A presença feminina no metal nunca foi fácil, mas "Mystery of Illusion" contribuiu para romper barreiras, mesmo que em escala modesta, ao apresentar uma mulher liderando com total autoridade uma banda voltada ao público mais “true”. Leather Leone é, sem dúvida, uma das grandes forças do disco. Sua voz agressiva e poderosa destoa das vocalistas convencionais do hard rock da época. Em vez de seguir um caminho sensualizado ou radiofônico, ela entrega agressividade, garra e intensidade — o que, por si só, já colocava o Chastain em uma categoria à parte. Em um universo musical ainda predominantemente masculino, "Mystery of Illusion" foi um grito de guerra em nome da diversidade e da potência vocal feminina.

Faixas como “Black Knight”, “I Fear No Evil” e “Endlessly” são demonstrações claras da proposta da banda: letras que falam de batalhas, poder e superação, embaladas por uma guitarra intrincada e uma bateria direta, mas eficiente. Os solos de David T. Chastain são tecnicamente impecáveis, mas o mais notável é que eles nunca soam gratuitos — estão sempre a serviço da canção.


Apesar dessas qualidades, o álbum jamais rompeu a bolha do underground. Lançado pelo selo Shrapnel Records — conhecido por abrigar guitarristas virtuosos mas com distribuição limitada —, o disco teve divulgação restrita e não conseguiu rivalizar com os gigantes do metal que dominavam rádios, TV e revistas especializadas. Ainda assim, com o passar dos anos, foi conquistando um status cult entre colecionadores e fãs mais fervorosos do metal tradicional, especialmente aqueles ligados à cena true metal pós anos 2000.

Hoje, "Mystery of Illusion" é frequentemente lembrado como um clássico perdido — um daqueles álbuns que os conhecedores citam com brilho nos olhos. É uma obra que merece ser revisitada, redescoberta e reconhecida por sua importância na consolidação de um estilo que ainda ecoa em muitas bandas underground do metal atual. Se não fez história nas paradas, fez história nos corações de quem vive e respira heavy metal com devoção. E isso, no fim das contas, talvez seja sua maior glória.


26 julho 2025

Heavy Metal e Espiritismo: o encontro improvável que faz todo sentido

Por Júlio Feriato

O metal não rejeita necessariamente o Cristo como figura espiritual, mas sim o uso político e autoritário de seu nome. 

O Heavy Metal, desde seu surgimento no início dos anos setenta, sempre foi associado ao obscuro, ao proibido, ao “antirreligioso”. Letras que mencionam demônios, símbolos ocultistas, cruzes invertidas e referências ao apocalipse fizeram com que o gênero fosse tachado de “satânico” por religiosos conservadores.

Já o Espiritismo surgiu no século XIX como uma filosofia que rejeita o Deus punitivo do cristianismo tradicional e propõe um Deus inclusivo, sem preconceitos ou julgamentos. 

Com base nisso, será que o heavy metal não está mais alinhado com a doutrina apresentada por Allan Kardec do que propriamente com o satanismo?

A rebeldia do metal é, em grande parte, uma reação à imagem tradicional de um Deus vingativo, severo e controlador — aquele que condena o pecador à danação eterna, que exige obediência cega e que é usado como justificativa para moralismos e autoritarismos religiosos. Esse Deus — criado mais por teólogos do que por Cristo — é o principal alvo da revolta artística do metal.

Nesse cenário, a figura de Satã é comumente usada não como objeto de adoração literal, mas como símbolo de oposição, de liberdade frente à opressão religiosa, de rebeldia contra dogmas sufocantes. Essa representação, embora chocante à primeira vista, é muito mais filosófica do que espiritual no sentido negativo.

Noruegueses do Mayhem.

Há casos — como na cena norueguesa dos anos 1990 — em que houve, sim, uma adesão simbólica ao satanismo. No entanto, mesmo nesses contextos, o que se propunha era mais uma filosofia niilista ou anticristã do que um culto literal ao diabo.

Grande parte do uso de símbolos "satânicos" ou "anticristãos" no metal não tem compromisso religioso real. Trata-se, muitas vezes, de uma reação estética e filosófica à hipocrisia moral e social promovida por certas instituições religiosas — especialmente aquelas ligadas ao cristianismo histórico.

Essa crítica encontra eco na doutrina espírita, que também se distancia do cristianismo tradicional ao rejeitar um Deus vingativo, o inferno eterno e a ideia de salvação por fé cega. O Espiritismo apresenta um Deus de amor, progresso e justiça, que concede ao ser humano liberdade de consciência e evolução moral. A doutrina codificada por Allan Kardec é, por si só, revolucionária em relação ao cristianismo romano. Ela rejeita o céu e o inferno como lugares físicos; não crê no diabo como entidade; vê a alma como em constante evolução; e valoriza a razão tanto quanto a fé.

Do ponto de vista espírita, o que se entende por “satanás” ou “espíritos do mal” são espíritos ainda ignorantes, ligados à matéria, que podem, sim, influenciar negativamente — mas não são figuras absolutas do mal.

Esses pontos coincidem, curiosamente, com os temas abordados por bandas que criticam o “deus tirano”, a hipocrisia religiosa e a negação da ciência. Em vez de “do mal”, o que o metal muitas vezes clama é por justiça, autonomia e verdade.

Portanto, a “rejeição ao cristianismo” no metal, na maioria das vezes, não se opõe à espiritualidade em si, mas a um sistema religioso que oprime, impõe medo e sufoca a individualidade — exatamente o que o Espiritismo também combate.

A culpa é do cristianismo romano? De certo modo, sim. A aversão ao cristianismo no metal é uma reação ao cristianismo institucionalizado: aquele que queimou bruxas, promoveu cruzadas, oprimiu mulheres e matou em nome de Deus. O metal apenas faz barulho sobre algo que a espiritualidade lúcida já denuncia há séculos: que religião sem amor e sem liberdade é prisão da alma.

Com base nisso, podemos concluir que os espíritas são pessoas de mente aberta e sem preconceitos, certo? Errado. Espíritas, independentemente do que diz a doutrina, são, antes de tudo, seres humanos passíveis de erros.

Casos recentes, como os shows de Madonna e Lady Gaga, trouxeram à tona uma face preocupante do movimento espiritualista atual. Muitos se apressaram em afirmar que esses eventos “abriram portais negativos” e que as artistas estavam “a serviço das trevas” (link de um dos videos aqui). Nada muito diferente do que igrejas pentecostais bradam sobre o axé e o funk. Mudou o discurso, mas o julgamento continuou o mesmo — agora com linguagem preconceituosa travestida de espiritual.

Em um episódio recente, um canal espiritualista no YouTube (video acima) afirmou que Ozzy Osbourne seria exilado da Terra após a morte, devido ao seu “estilo de vida degenerado” e sua “conexão com forças densas”. Ignora-se, nesse caso, que Ozzy se declara cristão há décadas, tem letras que abordam fé, culpa, dor espiritual e até apocalipse — sempre de forma simbólica, nunca incentivando o mal como valor.

Mais grave: ignora-se o princípio básico da doutrina espírita de que todos evoluímos com base em nossas ações e intenções — não em estética, musicalidade ou escolhas artísticas.

Essa postura moralista não é espírita. É apenas fanatismo com incenso — o mesmo que condena o corpo, a arte e a liberdade de expressão por medo de uma espiritualidade que não sabe dialogar com a complexidade humana. A espiritualidade que julga, condena artistas e vê o mal em toda forma de expressão artística não está mais conectada ao Alto — mas ao próprio orgulho espiritual, que Kardec tanto alertou.

Talvez esteja na hora de perceber que, entre espíritos e guitarras, a verdadeira vibração elevada está menos na aparência e mais na intenção.

De qualquer modo, em termos práticos, o Heavy Metal e o Espiritismo não estão em campos opostos. Ambos se rebelam contra visões dogmáticas, maniqueístas e limitantes. Os dois clamam, cada um à sua maneira, por autoconhecimento, consciência e liberdade de pensamento.

Talvez, num futuro próximo, vejamos mais metaleiros espíritas — e mais espíritas de mente aberta para entender que espiritualidade e contestação podem, sim, caminhar juntas.

22 julho 2025

Ozzy Osbourne: a voz que me ajudou a sobreviver à adolescência

Por Júlio Feriato

Hoje, Ozzy Osbourne morreu. E com ele, algo dentro de mim também se foi.

Não apenas o vocalista do Black Sabbath, o "Príncipe das Trevas", o ícone — mas a voz que atravessou os anos mais turbulentos da minha vida e, sem dizer diretamente, me sussurrou: "Você não está sozinho."

Ozzy nunca foi meu ídolo absoluto. Não sou do tipo que colecionou tudo, que sabia cada data, cada letra de cor. Mas ele sempre esteve lá. Ele era parte constante da trilha sonora que embalou uma fase que, de verdade, me salvou. E, de alguma forma, ele também me salvou.

Na adolescência, eu era um enigma mal resolvido. Me sentia deslocado, estranho, como se tivesse sido deixado de lado num mundo que eu não entendia. Em casa, o afeto não era ausente, mas eu não sentia. O futuro, uma névoa espessa. Havia um aperto no peito que ninguém via — nem perguntava. Mas aí vinham os fins de semana. E vinham os amigos.

Nos reuníamos sem grandes planos, sem excessos, sem vícios. Não fumávamos, não bebíamos álcool. Só queríamos estar juntos, num espaço onde a gente pudesse ser quem era, sem explicações. E o que nos unia, mais do que qualquer coisa, era o heavy metal.

Aquilo não era só música. Era fuga. Era abrigo. Era nossa principal válvula de escape. Aqueles riffs distorcidos, os vocais carregados de dor e fúria, davam nome ao que a gente sentia e não sabia dizer. Transformavam o que era sufocante em algo suportável. E, por alguns instantes, nos faziam sentir vivos.

Ozzy fazia parte disso. Não era o centro, mas era base. Um dos pilares de tudo. Um dos pais daquele som que parecia entender melhor a gente do que qualquer adulto ao nosso redor. Quando ele cantava, era como se dissesse: “Tá tudo bem não se encaixar. Tá tudo bem ser esquisito, estar quebrado. Eu também estou.”

Lembro de ouvir “No More Tears”, “Mr. Crowley”, “Bark at the Moon”, e sentir um arrepio que misturava dor, consolo e alívio. Era como respirar fundo pela primeira vez depois de um dia inteiro segurando o ar.

Hoje, quando recebi a notícia da sua morte, foi como se todas aquelas memórias explodissem ao mesmo tempo. As noites com os amigos. As conversas confusas. Os olhos marejados. O medo do que viria depois. Mas, acima de tudo, veio a gratidão. Porque eu sei: se não fosse o metal — e se não fosse por caras como o Ozzy — talvez eu não estivesse aqui pra escrever isso.

A música me salvou.

E Ozzy, mesmo sem saber, fez parte disso.

Descanse em paz, velho.

E obrigado. Por ter sido trilha, abrigo, presença. Por ter feito parte da nossa fuga — e da nossa cura.

20 julho 2025

Quando conhecer seus ídolos estraga a música

Por Júlio Feriato

Este é um texto honesto de alguém que cresceu ouvindo heavy metal e que, por algum tempo, contribuiu com paixão para a divulgação e propagação do gênero. Não se trata de atacar nomes ou apontar dedos, mas de expor verdades incômodas que muitos preferem ignorar. E, se você se incomodar, talvez seja porque a carapuça, de fato, lhe serve.

Durante os anos em que apresentei o Heavy Nation no UOL, ao lado da Paula Baldassarri e da Fernanda Lira, vivi o que muitos considerariam um sonho: estar frente a frente com os ídolos, conversar com lendas da cena metal, frequentar bastidores e testemunhar de perto o que, para a maioria, permanece envolto em névoa e distorção.

Mas esse privilégio veio com um preço. A decepção não tarda a chegar quando a cortina desce e os holofotes se apagam. O que sobra, muitas vezes, é o ruído do ego, da arrogância e de comportamentos que desmontam a imagem que, por anos, a música ajudou a construir.

Não são poucos os artistas que, fora dos palcos e dos estúdios, revelam um comportamento que vai do ego inflado à completa falta de empatia. Pessoas que, com um microfone na mão, discursam sobre união, respeito e resistência, mas que, nos bastidores, agem como tiranos com seus colegas, desdenham os fãs ou carregam atitudes problemáticas que não combinam com a potência da arte que produzem.

Claro, conheço exceções. Músicos corretos, éticos, humildes. Gente generosa, coerente com o que canta. Mas são raros. A regra, infelizmente, é outra — e sustentada por uma cena que ainda prefere o mito à verdade, a nostalgia ao posicionamento.

Recentemente, essa percepção me bateu de novo, com força. Em uma conversa com um amigo, trocamos confidências e lembranças — e foi impossível não concluir: muitos dos artistas que moldaram nossas trajetórias são, fora dos palcos, pessoas que jamais respeitaríamos se não tivessem uma guitarra na mão ou um logo cultuado estampado no backdrop.

O mais doloroso é perceber como atitudes machistas, homofóbicas e, cada vez mais, fascistóides têm se tornado comuns entre músicos respeitados da cena. São figuras que, no palco, posam de rebeldes, mas, fora dele, endossam narrativas reacionárias, autoritárias e perigosamente alinhadas com o que há de mais podre na sociedade.

Também há os que usam a imprensa como arma. Recentemente, tivemos o caso de um músico veterano, muito respeitado na cena por sua história — e que eu também admirava —, utilizando uma entrevista para espalhar mentiras descaradas sobre outra banda. Ataques disfarçados de opinião sincera, insinuações plantadas com o objetivo claro de sabotar colegas e, claro, promover a própria imagem. A vaidade nesse meio é barulhenta — mais alta até que o volume dos amplificadores. E deu certo. A banda dele, que andava esquecida, voltou aos holofotes por causa dessa entrevista.

E é aí onde quero chegar. Fica difícil seguir ouvindo certas bandas cujos integrantes têm esse tipo de atitude. Os riffs continuam potentes. As letras, intactas. Mas algo se quebra. Porque não dá para dissociar a arte de quem a faz quando você já viu — ou ouviu — demais. Quando o mesmo sujeito que grita por liberdade no microfone compartilha fake news nas redes sociais, esconde assédio sob silêncio cúmplice ou sabota gente honesta nos bastidores.

Não se trata de exigir santidade. Todos erram. Mas há uma diferença entre tropeçar e cultivar o erro como método, entre ser humano e ser escroto. E quando isso fica claro, a mágica se esvai.

Hoje, ouço música de outro jeito. Com mais cuidado. Não basta soar bem — preciso saber quem está por trás daquele som. Às vezes, continuar fã à distância é uma forma de preservar a beleza. Em outros casos, é preciso simplesmente parar de ouvir. Porque há bandas que não cabem mais na minha playlist — e nem nos meus princípios.

O metal foi minha escola, minha religião, meu abrigo. E ainda pode ser esse lugar. Mas, para isso, precisamos deixar o barulho da distorção dar espaço à escuta crítica. Precisamos olhar para quem está no palco — e decidir se vale a pena continuar aplaudindo.